Já estava na letra “f” da lista telefônica e ele sabia que as páginas seguintes também não lhe interessavam. O ultimo tópico da seção, ele parou e analisou com muita calma. Porque chamara tanta sua atenção? Sei que Nietzsche é seu guru e Platão o seu patrono, mas ele já havia “amado” uma professora de filosofia antes, foi uma noite e tanto, contudo, conhecendo bem nosso amigo, não deve ter sido o bastante.
“555-9876... será que não conheço esse numero?” pensou por um instante como se dessitise de tudo. Baixou a cabeça e continuou a refletir. “Acho que não, ou teria certeza.”.
-- Alô? Como posso ajudá-lo. -- Uma voz rouca e grave perguntava do outro lado da linha.
-- É o Dr. Floyd? – o nosso amigo perguntava com um sorriso cínico estampado em seu semblante.
-- Sim. Você quer marcar uma consulta?
-- Acho que sim, é, foi por isso que liguei. Quero marcar uma consulta doutor. – cada vez que escutava o som rouco e grave do outro lado da linha sua adrenalina aumentava. “Ele deve ser especial” pensou, “Talvez possa ser o ultimo, preciso de uma nova companhia”.
-- Você poderá vir na sexta as 15h00min. Tudo bem pra você?
-- Ótimo.
O sorriso daquela figura esquálida estendia-se de um lado ao outro do rosto esquelético enquanto devolvia o telefone ao gancho. Levantou-se de sua poltrona velha e surrada e ascendeu o primeiro cigarro do dia, eram oito da manhã, mas para ele não fazia diferença, o dia e noite eram como instrumentos a serem manejados e para este novo desafio precisava apenas do dia.
Poucas pessoas sabiam quem realmente era Vinicius Mortis, era difícil vê-lo pela manhã e as noites nunca estavam em casa. As crianças do bairro diziam tratar-se era um velho bruxo ou serial killer foragido da policia, mas todos os sábados iam até seu apartamento apreciar o circo de insetos do velho Sr. V. -- e, diga-se de passagem, era o melhor da cidade, talvez o único.
Smile Vilage não era uma cidade tão grande, as pessoas se conheciam bem, por isso a necessidade de V. em procurar nomes em listas telefônicas de outros municípios, foi onde ele achou a maioria de suas vítimas. Pioneer ficava a uns 45 minutos de carro de Smile Vilage, por isso o movimento pendular de ir e vir era freqüente e as pessoas não estranhavam a presença de novas pessoas.
O Dr. Floyd estava esperando seu ultimo paciente do dia, eram 15h00minhs e o consultório fechava as 16h00minhs nas sextas. “espero que não demore, tenho um recital de poesia daqui à uma hora, vou só fazer um diagnóstico rápido e marcar outra consulta”, pensava nervoso enquanto lia a ultima de suas poesias.
-- Doutor, o Sr. Mortis chegou. Mando-o entrar? – seus pensamentos foram interrompidos pela voz aguda e irritante da nova secretária.
-- Claro, mande-o entrar.
Ao olhar para o velho manco que entrava em sua sala o doutor sensitivamente pressentiu que aquela não seria mais uma consulta banal. “Adeus recital” ele perdia-se em pensamentos enquanto o velho manco caminhava cuidadosamente pela sala a analisar os quadros e livros expostos nas paredes e estantes. Tarsila e Portinari perdiam completamente o sentido quando um homem como aquele apreciava as obras. Era como se os Retirantes fossem antropofagisados pelo Abaporu, uma coisa tão grotesca ver o belo apreciar o feio. Era inadmissível.
-- Pode se sentar Sr.
-- Aqui no divã?
-- Se preferir...
-- Por onde posso começar? Tenho tantas coisas para falar?
-- O que o trás até aqui?
-- Estou sentindo que o fim esta próximo, tudo que fiz durante toda minha vida vai acabar e mal posso esperar para que o fim comece.
O tempo passava e o doutor não parava de olhar para o relógio, Vinicius começou a sentir-se incomodado: “Será que não estou conseguindo, o que devo fazer para atrair sua atenção? Acho que devo contar a verdade”.
-- Tudo que contar para o senhor será mantido em sigilo. Não é? Ética de trabalho. É isso?
-- Sim... – o doutor percebeu que as coisas passaram a ficar mais interessante – nada sairá deste consultório.
-- Sou um pastor doutor. E sinto que minhas ovelhas chegaram ao fim, perdi a vontade de conduzi-las. Armar uma estratégia. Um plano perfeito para finalmente chegar ao orgasmo, vendo a essência encarnada escarlate dos meus gentis amores.
Ele conseguiu, não há palavras para descrever o horror sentido pelo jovem analista: ele parou de respirar por um segundo, depois ficou ofegante, a sala espaçosa e cheia de estantes entupidas de livros girou a sua volta, a cor cinzenta da sala tornou-se rubra como o fogo e excitante como o sangue. Depois do breve delírio, Ivan Floyd, sentou-se em uma cadeira estofada ao lado do divã e tentou relaxar, apesar de ser impossível em um momento como este e perceber que nada fazia sentido:
-- Você veio procurar um psicanalista porque não tem mais vontade de matar?
-- Não sou um simples assassino doutor, confesso que sinto prazer em uma presa digna, mas não é simplesmente matar... É sentir amor pela pessoa a ponto de livrá-la do mal da humanidade, pense só: o que o homem faz além de mal a sua própria espécie? Estamos em pleno século xx e o controle sob a tecnologia é indiscutível, mas de que modo a usamos? Através de armas para conseguir o controle completo sob uma determinada nação só porque não segue os nossos dogmas capitalistas? De que serve esta guerra do Vietnã, além de afirmar a autoridade dos grandes investidores? O que ganhamos com a miséria da África, além de papel? Deus nos deu este mundo para aprendermos a amar o próximo e não dominá-lo, e é isso que eu faço, assim como Caim entregou ao Criador o seu bem mais precioso, eu entrego aos braços Dele tudo que amo. A humanidade.
Ao posicionar-se melhor na cadeira para que pudesse não desviar sua atenção daquele que seria um quadro clínico reconhecido como “esquizofrenia”.